Resumo Colaborativo: o que aconteceu no primeiro dia do 4º Curso Avançado de Cuidados Paliativos
Curso Internacional Avançado de Cuidados Paliativos do Instituto Paliar
Nos dias 9 e 10 de maio, o Instituto Paliar realizou a quarta edição do Curso Avançado de Cuidados Paliativos. Com o propósito de registrar e consolidar os principais conteúdos abordados nas palestras do primeiro dia, a enfermeira Flávia Firmino — enfermeira oncologista, paliativista e aluna do Instituto Paliar — organizou, de forma voluntária, um material rico em reflexões e aprendizados.
Este conteúdo foi pensado como uma ferramenta de troca e disseminação de conhecimento entre profissionais que atuam nos cuidados paliativos e em áreas correlatas, documentando os destaques do evento sob uma perspectiva prática e sensível.
Boa leitura!
Curso Avançado de Cuidados Paliativos
Instituto Paliar 09 e 10 de maio modalidade híbrida
Museu da Arte Moderna – MASP - Avenida Paulista
Mensagem de boas-vindas
Prof. Dalva Youki Matsumoto
- Os Cuidados Paliativos vieram para ficar — e, por isso, a formação de qualidade para os profissionais da área é essencial. Ao buscar capacitação, é fundamental estar atento à seriedade e excelência dos cursos oferecidos.
ABERTURA E BOAS VINDAS: DIRETORES Conferência de abertura: Humanidade em vulnerabilidade: o papel dos Cuidados Paliativos Débora Noal
Na conferência de abertura do 4º Curso Internacional de Cuidados Paliativos, Débora Noal abordou o tema "Humanidade em vulnerabilidade: o papel dos Cuidados Paliativos", trazendo uma reflexão sensível sobre como cuidar do sofrimento humano nos contextos de adoecimento e finitude. Com base em sua experiência em emergências humanitárias, destacou a importância da escuta, da presença e do acolhimento como pilares do cuidado paliativo. Sua fala marcou o início do evento com profundidade e humanidade, reforçando o compromisso com uma prática ética e centrada na pessoa.
Novamente, Débora Noal destacou a atuação dos profissionais paliativistas em contextos de catástrofes. Com base em sua experiência em mais de 20 países, ela mostrou que paliar até o extremo da vida não significa necessariamente paliar até a morte – é, sobretudo, manter a presença e a dignidade em situações-limite. Ela reforçou o papel afetivo e relacional do cuidado, dizendo que “a capacidade de ter afeto até a última gota do cuidar” é o que diferencia a prática paliativa.
A fala de Débora foi entremeada por relatos emocionantes, como o de mulheres vítimas de violência extrema no Congo, estupradas por dezenas de homens e posteriormente abandonadas por suas famílias. Apesar do trauma, foi possível construir novas possibilidades de vida para muitas delas. Uma das frases mais tocantes de seu relato foi o momento em que uma das mulheres, ao ser questionada sobre qual era sua alegria do dia, respondeu: “O cheiro da bochecha do bebê e o calor da pele dele grudado na pele da gente quando a gente acorda.”
A palestrante destacou quatro pistas para saber até onde é possível cuidar:
1. Saber como você foi parar ali: É reconhecer que o profissional da saúde carrega um “passaporte” para acessar o íntimo da vida humana – o medo de viver e de morrer. O diploma é uma medalha que abre essas portas.
2. Manter o propósito: É preciso unir um coração bom, um olhar científico e uma pitada de bom humor para seguir.
3. O desastre como acelerador do tempo: Em muitos casos, tudo o que é possível fazer é estar junto. Quando o futuro se resume a algumas horas, o cuidado até a última gota se torna ainda mais valioso.
4.Coloque a sua máscara: Se a situação for desesperadora e insuportável, é sinal de que talvez não seja o seu lugar naquele momento. É necessário reconhecer os próprios limites para continuar cuidando com verdade.
BLOCO I - GESTÃO - EM BUSCA DO CUIDADO PALIATIVO ACESSÍVEL PARA TODOS Moderadora do bloco (PALIAR): Juliana Ferragut
MESA 1: "POLÍTICA PÚBLICA E OUTRAS BARREIRAS"
- Avaliação crítica da realidade em Cuidados Paliativos na América Latina: Melhoria no Acesso a Opioides : Tania Pastrana (Colômbia/ Alemanha)
- Necessidades para a construção de uma política pública de CP no Brasil : Samir Salman
MESA 2: "O NOSSO SOFRIMENTO GRAVE RELACIONADO À SAÚDE"
- Nossa sociedade latino americana e sua epidemiologia do sofrimento grave relacionado a saúde - qual deve ser o foco de nossa atuação?: Tania Pastrana (Colômbia/ Alemanha)
- O Cuidado Paliativo que o Brasil precisa: necessidades na APS, transição de cuidados e a organização na instância hospitalar: Gabriela Hidalgo
O primeiro bloco do evento teve como foco principal a gestão e a luta por um cuidado paliativo acessível a todos. A Mesa 1 abordou as barreiras para implementação de políticas públicas em cuidados paliativos e discutiu os entraves históricos que dificultam o acesso, especialmente na América Latina. A convidada Tania Pastrana, com atuação na Colômbia e Alemanha, apresentou uma avaliação crítica da realidade latino-americana, destacando como a dor é subtratada em função da baixa disponibilidade de opioides e da escassez de formação profissional. Segundo ela, "as políticas são voltadas para o controle e não para o acesso". Enquanto países como os Estados Unidos enfrentam uma “crise do excesso”, os latino-americanos lidam com a “crise do acesso”, o que exige a criação de políticas cuidadosas e equilibradas.
Pastrana mostrou, por meio de gráficos e dados, as grandes variações de acesso dentro de um mesmo país e lembrou que, mesmo onde o medicamento está disponível, muitas vezes ele não é prescrito por falta de capacitação dos profissionais. Ela reforçou que o paliativista tem papel central na mudança desse cenário, e que a dor precisa ser tratada como prioridade ética. Relembrou que, desde 2014, os cuidados paliativos foram reconhecidos como um direito pela Organização Mundial da Saúde.
Samir Salman, por sua vez, apresentou os avanços e desafios específicos do Brasil. Informou que a Atenção Humanizada passou a ser um princípio do SUS e reforçou a importância da mobilização política para que a Política Nacional de Cuidados Paliativos (PNCP) avance. A lei existe, mas precisa sair do papel – e isso só ocorrerá com pressão e engajamento. Samir alertou que “precisamos conhecer o SUS e ocupar os espaços dos Conselhos de Saúde das nossas regiões”. Informou ainda que 11 estados já solicitaram equipes de CP, mas ainda não houve implementação por causa de entraves burocráticos. A sensibilização do sistema está prevista para acontecer em até três anos, prazo em que o país deverá formar os primeiros especialistas conforme a PNCP.
Na discussão geral, foi destacada a atuação das Comunidades Compassivas no Brasil, já presentes em mais de 20 territórios. Também foram citados exemplos internacionais inspiradores, como a Argentina, que usa a metadona como opioide de primeira linha e produz opioides em escala para ampliar o acesso; El Salvador, que adotou a receita eletrônica para evitar a "via-sacra" do paciente; Colômbia, que criou um fundo nacional e uma linha direta (“Rod-line”) para apoiar a população; e Uganda, onde enfermeiras estão autorizadas a prescrever opioides.
A Mesa 2 trouxe reflexões profundas sobre o sofrimento grave relacionado à saúde na América Latina. Uma metáfora poderosa usada por Tania foi a do tsunami, que se fortalece justamente no momento de recuo das águas. Para ela, o cuidado também se fortalece na retomada, na presença e na escuta profunda.
Já Gabriela Hidalgo abordou diretamente a pergunta: “Que tipo de cuidado paliativo o Brasil precisa?” – e respondeu ao final de sua fala que é o cuidado territorializado, articulado com as realidades locais. Destacou a importância de implementar a PNCP em todos os pontos da rede de saúde ao longo da vida, especialmente na fase final. Apontou três eixos estruturantes: acesso, medicamentos e educação.
As estratégias propostas para avanços incluem:
1. Adoção de condutas baseadas em evidências científicas e habilidades humanas.
2. Incorporação dessas condutas em todas as esferas do SUS e pela própria comunidade.
3. Fomento às ações coletivas e sociais, que aumentam o alcance e o impacto do cuidado.
Gabriela ressaltou que, para que o cuidado seja efetivo, ele precisa considerar a diversidade territorial do Brasil. Por isso, é essencial investir no Planejamento Regional Integrado (PRI), que organiza a rede por macrorregiões – o Brasil possui 120 delas, todas com contextos distintos. Pensar o alívio do sofrimento e o bem-estar dentro dessas especificidades regionais é o grande desafio da política pública em Cuidados Paliativos no país.
BLOCO II - ASSISTÊNCIA - "A PRÁTICA REFINADA DO CUIDADO PALIATIVO" - Moderadora do bloco (PALIAR): Carolina Neiva
MESA 1: "CUIDADO PALIATIVO DE QUALIDADE DISPONÍVEL EM TODA REDE"
- Indicadores de resultado que reflitam os cuidados paliativos que nós queremos: Manuel Luís Vila Capelas (Portugal)
- Situações complexas em cuidados paliativos - o que são? : Henrique Parsons (Canadá)
MESA 2: "O PALIATIVISTA E O AUTOCUIDADO NECESSÁRIO"
- O sofrimento do outro que não conseguimos cuidar - amadurecendo expectativas na jornada paliativista : Luís Alberto Saporetti
- Burnout e fadiga por compaixão em paliativistas - a sobrecarga de trabalho e a ética do cuidado : Erika Pallottino
O segundo bloco do evento aprofundou as discussões sobre a prática assistencial em Cuidados Paliativos, com enfoque na qualidade do cuidado em toda a rede e na necessidade do autocuidado por parte do paliativista. A primeira mesa abordou a importância dos indicadores de resultado que reflitam, de fato, o cuidado paliativo que se deseja oferecer. O convidado Manuel Luís Vila Capelas, de Portugal, trouxe uma análise criteriosa sobre os tipos de indicadores utilizados na prática clínica e destacou os indicadores de processo como os mais relevantes, pois eles respondem à pergunta “como fazemos?” – ou seja, expressam a qualidade da prática em si.
Segundo Capelas, é essencial mensurar e avaliar a situação do paciente antes da intervenção, para compreender o impacto e planejar ações futuras. O indicador, nesse sentido, é uma ferramenta poderosa que possibilita:
- Programar a assistência;
- Conhecer desejos e preferências;
- Compreender possibilidades terapêuticas;
- Clarificar os objetivos de cuidado.
Ele enfatizou que é preciso evitar a agressividade nos cuidados pós-morte, refletindo sobre o equilíbrio entre a qualidade percebida pelo paciente e a qualidade percebida pelo profissional. Capelas também propôs perguntas fundamentais para os serviços refletirem sobre sua atuação
- Como trabalhamos em equipe?
- Como articulamos os recursos?
- Como investigamos e nos posicionamos eticamente diante das investigações?
- O que fazemos e quantos cuidamos?
A necessidade de uma visão holística e integral permeou toda sua fala. O palestrante destacou o papel dos indicadores sentinela, que funcionam como “alertas” de falhas no processo – um tipo de semáforo amarelo que pede atenção. Relatou ainda a experiência portuguesa na construção de indicadores por meio da metodologia Delphi, considerada a mais apropriada nesse contexto, e a identificação de prioridades nesse processo.
Capelas compartilhou também a experiência do Programa de Apoio ao Luto, que destaca a importância de garantir a presença da família no momento da morte do paciente. Lembrou que a prática dos Cuidados Paliativos enfrenta um alto grau de heterogeneidade de doenças e contextos, o que exige ainda mais sensibilidade na criação de indicadores. Por fim, lamentou, com base em gráficos de qualidade de morte, o fato de que países com menos estrutura do que Portugal e Brasil estejam à frente nos rankings de qualidade – uma constatação que nos obriga a refletir e agir.
A segunda palestra da mesa foi conduzida por Henrique Parsons, do Canadá, que abordou o conceito de situações complexas em Cuidados Paliativos. Ele afirmou que o que gera complexidade não são necessariamente os quadros clínicos em si, mas os fatores externos envolvidos no cuidado. Relembrou que a rotina do paliativista é repleta de situações complexas, e que é preciso olhar com atenção para contextos específicos como: populações encarceradas, LGBTQIA+, refugiados, imigrantes e pessoas em situação de rua. Parsons provocou a plateia a refletir sobre quantas dessas pessoas estão chegando aos hospitais e como as instituições estão – ou não – se preparando para acolher essa diversidade.
Na Mesa 2, o foco passou a ser o autocuidado necessário ao paliativista. Luís Alberto Saporetti iniciou sua fala lembrando que o Burnout muitas vezes nasce do desejo de salvar o outro – um desejo nobre, mas que pode se tornar fonte de frustração quando não há possibilidade de “cura” ou resolução completa do sofrimento. Saporetti destacou que, muitas vezes, o mais poderoso gesto é apenas a presença, o silêncio e o testemunho.
Ele propôs uma pergunta incisiva: “Somos uma presença verdadeira ao lado de quem está sofrendo?” Essa reflexão exige que o profissional identifique os próprios limites e entenda a diferença entre o desejo do paciente e seu próprio desejo de cuidar. Com sensibilidade, falou sobre o mito do Obaluaiê – o curador ferido, para lembrar que todos que cuidam também carregam suas dores. Pediu para que o cuidado aconteça com tempo, sem pressa e sem invasão, respeitando os processos individuais e os silêncios do outro.
Erika Pallottino encerrou a mesa com uma fala firme e sensível sobre a sobrecarga no trabalho do paliativista. Ela ressaltou que a maior parte do desgaste não vem diretamente do paciente, mas de todo o entorno necessário para que o cuidado aconteça. A burocracia, a estrutura frágil, as equipes incompletas e as decisões políticas influenciam diretamente no bem-estar de quem cuida.
A partir da sua experiência pessoal, Erika compartilhou quatro orientações práticas para manter o equilíbrio e a saúde mental no trabalho:
1. Priorize sua família;
2. Trabalhe com pessoas que você gosta e que gostam do que fazem;
3. Tire um período sabático;
4. Viva como se você tivesse uma doença terminal.
Ela reforçou que o cuidado é, antes de tudo, uma atitude. Finalizou sua fala com duas frases marcantes:
- “Quando faltamos a nós mesmos, falta-nos tudo.” – Goethe
- “Sentimentos são fatos nessa casa.” – Cicely Saunders
Essas falas deixaram evidente que, para continuar cuidando com qualidade, é preciso também olhar com carinho para quem cuida. O Bloco II foi uma poderosa chamada para o equilíbrio entre a técnica refinada e a humanidade presente em cada ação cotidiana dos Cuidados Paliativos.